Sejam bem-vindos ao outro lado do espelho, onde tudo pode acontecer (e acontece).

Wonderlando é um blog sobre textos diversos, descobrimentos e crescimento. A filosofia gira em torno do acaso, misturando fantasia e realidade de dois amigos que se conheceram também por acaso, Alice - que tem um país só seu -, e Yuri - chapeleiro e maluco nas horas vagas.

Leia, comente e volte sempre... Ou faça como a gente e não saia nunca mais.

22 de julho de 2011

Abajur

Acordei com o dia escorrendo no vidro da janela, mas já não chovia mais e o Sol brigava com as nuvens para se exibir. Ainda deitado no sofá da sala, inclinei a cabeça um pouco pra trás e vi a lâmpada do abajur acesa em vão no dia. Sentindo o corpo cansado e marcado de horas atrás, não quis levantar, mas o relógio anunciava o intervalo do meu sonhar.

O cheiro de mijo, morte e cigarro tomava conta da manhã. Fazia tempo que Allan não aparecia, estava maior, crescido, seguro como sempre com aquele olhar confiante, melancólico e disperso. Nunca o vi dormir, mas está sempre em outro lugar. Estático em pé no quintal, decorava o cenário, mas não fui falar com ele.

Meus pés descalços desviavam os passos naquela cena pós-guerra: cinzas, caximbos, seringas, bitucas, garrafas, latas, papéis, vômitos, restos... Reparei que um não respirava. Um amigo – outro. Não reagi. Allan veio e me abraçou e isso foi tudo que podíamos fazer. Acho que o abraço foi pra saber se estávamos vivos, aqui presentes em carne e osso, sabe?! Tudo pode ser tão confuso quando se usa tanta coisa toda hora que às vezes sinto como se nada disso fosse real, e penso que talvez esse seja o ponto da coisa toda, ultrapassar barreiras. Senão... Se essa destruição é somente fuga... Hoje um não acordou.

Meu estômago pedia sólido pra tentar completar os vazios. Nosso café da manhã era as sobras daquele passado no fundo de uma garrafa, na raspa de um pó e na pontinha de um beque sujo de batom. Peguei algumas coisas que mortos não precisam e fui embora, enjoado com a claridade, enjoado de ter que despertar mais um dia como alguém que nunca descansa, que não folga as dores com risadas, que não sente machucar as perdas. A anestesia que as drogas sustentam só deixam sentir os músculos amassados e as marcas inflamadas em veias estouradas. E as portas abertas no cérebro fazem da vida algo tão passageiro, deslocado e sem graça quanto pessoas num ônibus lotado.

O vento fresco das oito me dava atenção pra tentar me carregar praquele dia, pra hoje, pra mais pra frente... mas me sinto como a luz do abajur.

15 de julho de 2011

Brisa da Noite

Como se captura algo que não existe? Camaleoa que se esconde na multidão, lenda, folclore... O conto a seguir foi algo que ninguém me contou, eu vi, vivi... Só não tenho como provar.


Duas luas cor de mel em noite quente o observavam... Os olhos de Brisa da Noite. Seu cabelo era mata que os dedos trilhavam e se enroscavam para morder. Selvagem, corria entre árvores e prédios, sabendo exatamente onde pisar nos espaços entre raízes e sapatos.


Quando corre, não faz vento. Quando se move, nem a sombra a acompanha, vai embora e volta sem que se deixe perceber. Seu corpo marcado de flores se camufla em relvas psicotrópicas. E no acalanto do tempo, se multiplica nos minutos para fazer valer as horas.


E no acalanto das horas, se multiplica nos espaços entre milésimos para fazer valer o tempo.


Sempre há um caçador a espreita, observando a beleza com que dança seus passos, dos desenhos nas sombras de seus movimentos, do cantar do pássaro que a devia vida e sempre a acompanha. Ela também o acompanha com um sopro de vento suave que ecoava musicalmente por toda aquela Urbália.


Dizem que não é difícil caçá-la – mas eu nunca vi ninguém. Ouvi por aí que ela é quem escolhe e vai atrás da presa. Se alimenta de brisa e sentimento, não da razão de um caçador limitado. E foi exatamente por isso que aquele que observava no parágrafo anterior virou observado. Tão inocente, indefeso com aquela arma na mão sem querer atirar, sem pretensões ou grandes ambições. Não caçava nada, mas gostava de se perder pela primeira vez ali e sentir o lugar, e quando o sentiu... Brisa da Noite.


Felina, se transformava em onça quando bem entendia, se misturava na natureza e não havia quem a encontrasse – a não ser pelo seu cheiro afrodisíaco e delicado que faz os olhos se fecharem para intensificar mais os sentidos.


Cheiro de mulher.


Cada vez mais forte.


a dança,


o cheiro,


a sombra,


o cabelo,


o transe,


a transa,


tudo.


toda,


em


movimento.


Ela então finalmente surgiu – sabendo que já o tinha – maior do que os prédios, com as presas de fora, um sorriso. Por um instante o caçador se assustou e seu instinto fez suar músculos tensos. Recuou sem saber para onde ir. Depois pensou se teria realmente que correr. 


Cerrou as pálpebras encantado com a dona, com seu cheiro, seu pêlo... Hipnotizado, ficou estático esperando ser devorado, encarando o coelho em seu olhar felino penetrante de luas. Seu próprio reflexo. Tsuki-no-Usagi.


Noite em preta e branca... A brisa.
Virou onça com pele de céu e pintas de estrelas. Misturou.


O lambeu.




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*Brisa da Noite é mórfica e atemporal. Escreverei mais sobre ela aqui, ela é muitas e toda. Espero que gostem.*

2 de julho de 2011

À Deriva

Sob o sol de outono, claro e morno, ele vestia apenas uma camiseta azul marinho com um arco-íris em forma de "U" ao contrário, cueca branca e todos aqueles pelos indicando a direção do vento. Ela usava boina vermelha, cachecol xadrez e óculos escuros. Sentou na proa para admirar umas libélulas que brilhavam mesmo não estando escuro. Ele teve que ficar mais atrás, tinham que se equilibrar para não virar o pequeno veleiro de folha de caderno.

No mar de indagações e pensamentos ele veleja à deriva em seu barquinho de papel. Nunca soube aonde ir e nunca entendeu porque deveria saber, ou o que fazer ou porque ter que escolher. Assim, atirou o único remo ao mar, por entender que aquilo não fazia sentido. Não se rema quando não se tem para onde. Em troca, o mar devolveu um canivete de pirata, que ele conferiu se estava afiado. Sentiu o gostinho de ferro do sangue no dedo, manchando o barco - mas só um pouco.

Ela o acompanhava por crer estar à deriva, porém queria aportar numa praia deserta e virgem, mas ele a lembrou que nada podiam fazer. A abraçou tentando aliviar a frustração da jovem marinheira que queria descer a todo custo, mas está tudo cercado de água gelatinosa. Então começa a chorar.

O sol está anunciando o começo do fim da tarde, ela chora levando as mãos aos olhos, refletindo aquele crepúsculo. Espelho de lágrimas. E tudo aquilo é simplesmente lindo. Ele a coloca em seu peito antes que ela suma em choro e molhe todo o pequeno veleiro de folha de caderno.

O mar irritado e enciumado por não ser dono daquelas águas não os quer mais ali e empurra com ondas fortes para qualquer lugar. Até o silêncio, quem em troca permite que se ouça a bússola no peito dela – mas agora já é tarde e as estrelas tão distantes brilham sem razão. Cansados, deitam e sonham o mesmo sonho.





(Até afundar... Ou quem sabe aportar em algum paraíso natural que os dê razão.)